terça-feira, 26 de agosto de 2008

Ricardo I

"Maria, Manel (XXVI)
Maria
Regresso de férias, portaram-se todos muito bem, tive saudades do Verão com os miúdos, mas acho que vou ter de esperar pelos netos para poder voltar a estarmos todos. Voltei ao banco sem nenhuma vontade, por mim fazia agora uma sabática de um ano e depois decidia se ficava dondoca, mas não posso. Tenho pena, assim nunca saberei se tenho vocação para dona de casa, por vezes penso que sim.
Cheguei ao escritório apreensiva com o que iria sentir quando visse e falasse com o Ricardo. Nas férias pouco ou nada pensei nele, recebi uma mensagem a que não respondi, dizia apenas: "Estás bem?" Cumprimentámo-nos como dois colegas depois de férias - "então, foram boas?", "muito curtas, não dá para descansar" -, as trivialidades habituais. A meio da manhã veio ao meu gabinete convidar-me para almoçar, aceitei, mas não senti nenhuma vibração especial.
Ao almoço o Ricardo olhou-me fixamente: "Acho que estou apaixonado por ti, passei este tempo a pensar em nós". Reagi sem pensar: "Deves estar parvo ou tens de ir ao psiquiatra, a pensar em nós, qual nós, não existe nós nenhum, isso é a tua cabeça que não está bem!" O almoço acabou tenso, voltámos para o banco comigo irritada e a pensar: "Será que não é possível ter um amigo íntimo homem, o que é que eu faço para isto me acontecer?..."
Acalmei. O Ricardo não merece que eu tenha reagido tão zangada, acho que estou completamente à defesa, mas não gostei de sentir um homem pendurado em mim. Estou muito bem com o Manel, gosto de ser cortejada, sinto-me bem com isso, mas não quero confusões na minha vida, os homens quando dizem que estão apaixonados estão a dizer que querem ir para a cama, não percebem esta coisa elementar de ter prazer em estar próximo sem tocar, são umas crianças, querem mexer em tudo...
As mãezinhas nunca lhes explicaram a diferença entre uma mulher e um carrinho de brincar...

Manel
Fim de férias, voltei à rotina, dois, três dias fora, outros tantos em casa. Senti algumas coisas estranhas neste tempo de descanso. Tive muitas saudades do meu pai, sobretudo quando estávamos todos juntos a passear ou a comer. Faltou-me aquela cumplicidade que tínhamos no olhar, como se estivéssemos sempre a dizer um ao outro, "nada disto é para levar a sério".
Com a Maria estive bem, ainda demos umas escapadelas ao Porto, para jantar e passear na Foz, mas senti-me um pouco devassado pela presença da família. Eu sei que isto é completamente ridículo ou mesmo infantil, mas tenho a perfeita noção que o meu casamento só sobrevive se puder, de quando em vez, estar uns tempos sozinho com ela.
Uma das coisas que me atraiu na Cristina foi imaginar que podia partir à aventura com uma mulher que não tinha grandes constrangimentos familiares, sem filhos, muito disponível. Mas quando isto acontecia eu ficava cheio de saudades da minha família, enfim não sabia bem o que queria. Ainda me lembro da angústia que senti, num sítio lindíssimo, em que só me queria vir embora com saudades dos meus filhos e sem poder falar disto com a Cristina. Inventei uma desculpa e antecipámos o regresso.
Com a Maria tenho tentado ter o melhor dos dois mundos, mulher a maior parte do ano, amante sempre que possível. Ela é versátil, adapta-se bem... Faz-me impressão pensar no envelhecer, não por mim - para já, cada vez que faço anos sinto-me feliz -, mas por nós. Não me estou a ver em casal, com sinais de decadência física, a caminho das consultas, da farmácia e da fisioterapia. Mas também não me imagino a passar por tudo isto sozinho. Isto hoje não está fácil, é sempre assim, quando venho de férias, fico deprimido que nem um cão..."
José Gameiro in Expresso, Unica de 23 de Agosto de 2008

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